TEXTO DE APRESENTAÇÃO E ENTREVISTA

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Texto de apresentação para o livro CIRCUITO ATELIER, sobre a obra de Sérgio Nunes, lançado pela Editora C/Arte em 20 de dezembro de 2005 - Belo Horizonte / Minas Gerais - 96 p; 54 il. Link para a página de Sérgio Nunes na Editora C/Arte: http://www.comartevirtual.com.br/ - no Menu - no alto da página - clique em CIRCUITO ATELIER e a seguir, na página que entrar, clique em Sérgio Nunes - nº 31.
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APRESENTAÇÃO
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PREÂMBULO
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Não é a regra que os volumes desta coleção contenham apresentações tão extensas. Contudo, certas especificidades de nosso momento cultural me induzem (se não é que me obrigam) a quebrar o padrão. Do todo, certamente, emergirá maior clareza e se conhecerá e entenderá melhor a obra de Sérgio Nunes. E é para isso que este livro existe.
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Na entrevista que se encontra mais adiante, utilizei numa das perguntas a expressão “remar contra a maré”. De propósito, não sei ainda a resposta. Mesmo se ele não se der conta disso, Sérgio Nunes anda, hoje, remando contra fortíssimas marés. Possui extensos interesses intelectuais, grande sentimento humanista e uma honestidade artística inerente, incapaz de ceder ao truque fácil. Vem a ser o contrário da falta de seriedade e de empenho, do quarto-mundismo em que patina atualmente um amplo segmento da cultura brasileira (mas não só da brasileira).
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A experiência mostra que os mais velhos costumam ficar conservadores e amargos. Ou melhor: costumavam. Temo que, na área cultural, o oposto tenha-se tornado agora mais freqüente: todo mundo aceitando, ou fingindo aceitar, tudo o que acontece ao redor, por timidez, inércia e/ou medo de parecer superado. Seja como for, permaneço atento para não estar sendo vítima da implicância da idade, e garanto que mantenho os olhos bem abertos. Disso resulta minha convicção de que uma espécie de vale-tudo assola o pós-modernismo brasileiro (mas não só brasileiro). Aliás, o que chamo vale-tudo talvez seja um dos fundamentos do próprio pós-modernismo tout court.
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Senão, vejamos. Um dos livros mais instigantes que li nos últimos tempos – não posso negar que cheio de insights – foi Classical Music and Postmodern Knowledge, de Lawrence Kramer (University of California Press, 1995). Caracterizando o pós-modernismo (que ele subscreve inteiramente), assegura o autor: “Um complexo corpo teórico interdisciplinar, entretecendo preocupações com a linguagem, a cultura e a subjetividade, andou repensando, e tornou obrigatório repensar, os fundamentos tradicionais do pensamento. Proliferaram paradigmas conceituais que problematizam os grandes princípios ordenadores de racionalidade, unidade, universalidade e verdade, recolocando-os como casos especiais de contingência, pluralidade, historicidade e ideologia” (pg. XI). Seguindo “livremente” Jean-François Lyotard, define ainda pós-modernismo como “uma ordem conceitual na qual os grandes esquemas de explicação sintetizantes perderam o lugar, e na qual as bases tradicionais da compreensão racional – unidade, coerência, generalidade, totalidade, estrutura – perderam a autoridade, se não a pertinência” (pg. 5). Não tenho dúvida de que o pós-modernismo e suas aberturas trazem colaborações e enriquecem o processo do conhecimento. Mas nem por isso se pode instituí-lo em novo organon, numa epistemologia que ca(ç)sse a razão e redunde num relativismo absoluto.
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O fato é que, na geléia geral pós-moderna, me assustam, por sua desqualidade, muitas das obras que hoje se mostram nas galerias de maior prestígio. Assusta-me ainda mais a indiferença – para não dizer omissão – da intelligentsia, da imprensa, da crítica e dos demais artistas; todos ficam caladinhos, a ver se também ‘descolam’ o seu espaço. Por comodismo e falta de preparo, passou-se a confundir qualquer esquisitice ou bolação com pesquisa e descoberta, e instituiu-se uma verdadeira academia de trouvailles vanguardistas. Elas passam a valer por si sós, independentemente dos resultados – como se o processo, na criação, fosse auto-suficiente e autotélico, e não o instrumento para se chegar a uma obra.
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Vamos a um exemplo. Contaram-me, ou li em algum lugar, que uma artista (se não me engano mineira) andou fazendo desenhos por meio do rastro de um caracol chinês, que ela deposita e deixa caminhar sobre o papel. Não vi os trabalhos e não tenho condições de, especificamente, avaliá-los. Não sei se a artista ‘dirige’ seus bichinhos, se interfere depois na superfície, de que modo e em que nível controla o acaso. Não sei, em suma, se de fato chegaram a resultar obras de arte, e de que qualidade. Mas fique claro que, em princípio, trata-se apenas de um achado, que permanecerá sendo um achado, e por si só não garante nada além disso. E permite levantar dúvidas cruéis. Será que esses caracóis desenham melhor do que outros – melhor do que os que eu, eventualmente, comprasse, e também pusesse a passear? Duas obras idênticas no processo e resultado podem ter diferentes qualidades, dependendo exclusivamente de quem as assina e do discurso do entorno? Por que o desenho de determinados caracóis deve receber mais elogios, e valer mais no mercado que o de outros?
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A não ser pela intenção (exatamente simétrica), essa proposta não se distingue muito daquelas provocações que, nos anos 1950, amarravam pincéis em caudas de burros para desmoralizar a arte abstrata, demonstrando que eles também ‘eram capazes’ da fazê-la. A que conclusão levaram? Justamente à de que burros não fazem arte. É necessária uma consciência geradora. O superdimensionamento, na criação artística, do processo e das idéias, em detrimento do resultado objetual, é um mau desdobramento, uma digestão tardia e imperfeita do ready made e da arte conceitual, invenções sem dúvida pregnantes mas não infinitas nem eternas. No Brasil acrescenta-se-lhes o que, muito mais a sério do que pode parecer, costumo chamar de pouquismo. É uma transformação local e preguiçosa, um macunaímico Ersatz do minimalismo internacional.
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Assim, o que lá fora foi realmente, na década de 1960, economia deliberada de recursos, capaz de gerar belas obras, tornou-se aqui carência de recursos, ou por não serem eles conhecidos, ou por não estarem de fato dominados. Não mais se consegue discriminar entre o traço efetivamente significativo de um artista e a mera garatuja de uma mão pouco treinada – já que, a olhos incultos, ambos parecem ser somente um rabisco. Avaliá-los diferencialmente exige do observador mais que simples teoria. Exige sensibilidade e experiência – o que já é mais difícil. Confundem-se, destarte, incipiência e inépcia com contenção e rigor, e vendem-se gatos por lebres – as duas primeiras em lugar das duas últimas.
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UMA OBRA PRECOCEMENTE DECANTADA E SERENA
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Sérgio Nunes não é dos que (se) (nos) enganam. Para começo de conversa, é um talento inato, um superdotado. Nesta qualificação não está implícita nenhuma dimensão mágica, intangível, e sim uma realidade concreta, mas de cujos mecanismos ainda conhecemos, cientificamente, muito pouco. Qualquer hora vai-se conseguir provar que os Mozart possuem algum pedaço do cérebro mais desenvolvido que o resto dos mortais – como já se descobriu que em Einstein era mais volumosa a área que lida com o pensamento matemático. O talento natural deixará, então, de ser uma avaliação subjetiva. Por enquanto, o de Sérgio Nunes se mede, antes de mais nada, pela ostensiva competência com que ele resolve todos os problemas da pintura, do desenho e da aquarela. Nesta, talvez a mais difícil de todas as técnicas, prova-se um mestre consumado.
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E atenção: escrevo competência, não facilidade. A mestria pode ser custosa. Na verdade, nunca se saberá qual o grau de esforço exigido pela total desenvoltura técnica. Nenhum artista – nem Schubert, que compunha um lied por dia – cria com a espontânea naturalidade de uma fonte. Foi Marcello Grassmann – outro superdotado – quem me disse, um dia, esta frase surpreendente e decisiva: “Nunca tive facilidade para o desenho. Tive paixão, o que é muito diferente”. Numa de suas vertentes (ele possui várias), Sérgio Nunes pertence à estirpe dos artistas figurativos, e, dentro dela, especificamente, a uma figuração de fundamento realista. É uma linguagem na qual não dá para enganar – embora muita gente o tente. Certos projetos artísticos continuam a exigir que se saiba desenhar e pintar como sempre se soube – e como foi necessário, também, a um Holbein, a um Vermeer, a Degas, a Picasso.
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Como convém a um superdotado de sua geração, Sérgio Nunes manifesta sua individualidade através dos mais diversos suportes, tendo roçado até pela arte conceitual e body art. Conhecem-se mais suas pinturas, aquarelas e desenhos. Conhece-se pouco um segmento de pequenos objetos nos quais, a um certo perfume de ready made – Marcel Duchamp é um dos artistas que ele mais admira – mas não se trata, a rigor, de ready mades, seriam antes assemblages – se soma uma inventividade delicada, muito viva e sensível, mas sempre submetida ao controle da inteligência que organiza. (Como em Braque: “J’aime la règle qui corrige l’émotion”). Sérgio Nunes não é nem pretende ser, por ora, um escultor; para isso lhe faltam certa monumentalidade, uma empostação mais dramático-sinfônica que lírica e de música de câmara. Mas não tenho dúvida de que poderia sê-lo, se e quando a tal se dispusesse.
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Voltando à pintura e ao desenho. Além da figuração de fundamento realista, existe na arte de Sérgio Nunes uma abstração de caráter caligráfico – não exatamente informal ou tachista –, [1] e há obras em que as duas tendências se justapõem. Essa liberdade-abertura nem sempre é bem compreendida e pode parecer incoerência: como ser figurativo e abstrato ao mesmo tempo? Além de embutir uma superada polêmica dos anos 1950 e 60 (figuração x abstração), tal dúvida universaliza indevidamente um valor – a coerência –, sem verificar se ele é realmente aplicável a todos os casos e artistas. A frase seguinte parecerá um jogo de palavras mas, acreditem-me, é absolutamente séria: coerência é qualidade quando é qualidade, em artistas cujo projeto, por sua própria natureza, a exige. E a coerência não é necessária nos projetos artísticos em que não é necessária, podendo chegar a ser defeito. Pode ser apenas um outro nome para a mesmice, a redundância, a falta de idéias. Louvamos tanto a coerência modelar de artistas como Mondrian e Volpi quanto a inventividade esfuziante, os vai-e-vens, a coragem de mudar – em suma, a incoerência – de artistas como o “protéico” Picasso (de Proteu, não de proteína). À luz da coerência, a obra de Picasso é um desastre.
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Analogamente, cada estilo traduz e serve para a produção de sua época, mas não para a de outra, para outro Zeigeist. Certamente um artista tão fora dos padrões como Matthias Grünewald (que, aliás, não se chamava assim), o excepcional autor do Retábulo de Isenheim, marco de um gótico tardio animado por uma expressividade angustiante e exacerbada, faria paupérrima figura, se julgado à luz dos valores gregos de harmonia, equilíbrio e contenção. Sabemos que a história da arte é feita de idas e vindas, de diástoles e sístoles, de alternâncias cíclicas entre pólos. De um lado, o pólo romântico, expressivo, lírico, patético, que dá vazão à subjetividade e a dissonâncias com o mundo. De outro, o pólo clássico, construtivista, objetivador, que revela uma relação harmoniosa com o mundo, a crença numa ordem cósmica presidida pelo homem (“a medida de todas as coisas”, segundo Protágoras), e é pautado por normas formais auto-instituídas.
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Acredito que Sérgio Nunes é um espírito clássico. Dá-se bem com seu reflexo no mundo e com o reflexo do mundo em sua obra. Esta não traduz conflitos e sofrimentos nem os suscita. Não serve a confissões pessoais, catarses visíveis, exorcismos; como já observei, o elemento dramático-sinfônico (mas não o lírico) permanece ausente. Por outro lado, fique claro que em estética e história da arte, clássico é uma designação precisa para um conjunto preciso de valores existenciais, éticos, formais. Ser clássico não tem nada a ver com ser acomodado, tradicionalista, avesso a seu próprio tempo e ao que é novo, e muito menos com o(s) academi(ci)smo(s). Academi(ci)smo é a repetição quase mecânica de procedimentos já conhecidos para obter resultados garantidos, em qualquer época ou estilo. Por isso pude dizer, mais acima, que hoje em dia se instituiu uma verdadeira academia de trouvailles de vanguarda.
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Não é este o primeiro texto que escrevo sobre Sérgio Nunes. O outro, “Ser Livre e Inteiro”, está publicado em meu último livro, O Olhar Amoroso (2002), e acrescenta outras descobertas diante de seu trabalho. Aqui e agora, pareceu-me mais adequado apontar para suas grandes coordenadas gerais. Last but not least, é preciso frisar o compromisso artístico – e não extra-artístico, para, contra ou anti-artístico – que ele mantém consigo mesmo e com sua produção. O que mais se costuma elogiar, hoje, numa obra, são as ausências, certas características diante das quais há um sinal negativo. Nenhuma obra é boa porque constrói algo, e sim porque desconstrói; não porque propõe soluções, e sim porque problematiza; não pelo que consegue dizer, mas sim pelo que não diz – pelo que omite, pelo que esconde, se não pelo reconhecimento de sua impotência; e assim por diante. Na contra-mão disso, a obra de Sérgio Nunes se inscreve, consciente e voluntariamente, sobre a historicidade da arte que a precede, não a nega nem quer subvertê-la. Nela busca, encontra e escolhe soluções – não problemas.
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Um dos erros de juventude de minha geração era imaginar que a grande arte só se dá no campo da transgressão, ou pelo menos da revolução de linguagem. É natural que, para indivíduos em processo de crescimento, a contestação e a vanguarda exerçam um apelo mais forte. Contudo, acaba-se aprendendo que os deveres de inventar, de ser novo, são exigências do romantismo, potenciadas pelo modernismo; não fazem parte intrínseca, não se manifestam em todos os momentos da história da arte. Só o conhecimento de causa nos permite reconhecer um dia, sem traumas, o quanto da grandeza de um Bach, um Mozart e um Brahms (para ficarmos só em exemplos desse porte) provém de cristalizações de linguagem, não de rupturas. Beethoven (o modelo titânico, o Prometeu dentre os músicos), Mahler, Schönberg foram de fato transgressores – o que, no entanto, não os torna, ipso facto, maiores que Bach, Mozart e Brahms.
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Esta última é a família de Sérgio Nunes – e há que reconhecer que ele se encontra em excelente companhia. Traz sua contribuição pessoal e original, mas permanece inequivocamente um consubstanciador, um consolidador. Sua arte também não é de rupturas. Isso não o apequena, apenas define seu escopo; talvez até o engrandeça, por ser, hoje, prova de coragem. Em virtude do que, lá no começo, chamei de honestidade artística inerente, continua incapaz de ceder a quaisquer truques estéticos e de mentir para si mesmo. Espírito claro, entre sua cabeça pensante, sua segurança de propósitos e sua mão super-afiada, arma-se uma rede de vetores que resulta numa obra precocemente decantada e serena.
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Olívio Tavares de Araújo
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[1] Veja-se na entrevista a discussão sobre a influência – ou não – de Cy Twombly sobre esse segmento.
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ENTREVISTA COM SÉRGIO NUNES
POR OLÍVIO TAVARES DE ARAÚJO [1]
para o livro CIRCUITO ATELIER.

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Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que
conhecê-la,
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,
E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.
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Fernando Pessoa
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QUANDO VOCÊ COMEÇOU A DESENHAR? E POR QUÊ?
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Sempre desenhei, desde pequeno. Desenhava em qualquer superfície que considerasse interessante e com qualquer material que me caísse nas mãos. Meus pais compravam materiais para mim e para meus irmãos, e sempre desenhamos muito na nossa infância. Gostávamos também de recortar papéis com tesoura e de construir objetos para brincar – de madeira, de lata, etc. Nasci em Belo Horizonte, e quando tinha três anos de idade me mudei com a minha família para uma cidade do interior chamada Mesquita. Um lugar maravilhoso, onde moramos por três anos e meio. Meu pai tinha uma estante de livros no escritório, e a parte de trás era de madeira clara. A estante ficava afastada uns quarenta centímetros da parede, de forma que eu entrava lá atrás e desenhava a lápis, a caneta, a carvão etc. Alguns anos depois de voltarmos para Belo Horizonte, quando meu pai estava fazendo uma reforma no escritório e os móveis estavam fora do lugar, redescobri aqueles desenhos. Recentemente uma amiga de infância me disse que ficava impressionada de ver como eu, aos quatro anos de idade, me compenetrava na escolha dos lápis que iria usar – e penso que era assim mesmo, sempre me interessei muito por materiais. Quanto à segunda parte da pergunta, acho que comecei a desenhar porque me dava prazer. Mas por trás do prazer havia uma espécie de necessidade pessoal. Ninguém desenha só por prazer. Desenhar é, antes de tudo, trabalho – e, também, escavação do inconsciente. Mais tarde, aos quatorze anos, comecei a desenhar seriamente, numa escola de arte, e me lembro de que meu interesse principal era o desenho de observação, que praticava com a maior intensidade possível, porque queria saber “como se faz”.
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VOCÊ ACREDITA EM VOCAÇÃO E EM TALENTO?
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Se você se refere a vocação enquanto “disposição natural e espontânea que orienta uma pessoa no sentido de uma atividade” e a talento enquanto “aptidão, capacidade”, eu diria então que vocação e talento não são uma questão de crer ou não crer. São fatos, quer dizer, evidentemente existem. Mas, se você se refere a vocação enquanto “capacidade inata”, bem, não acho que seja importante crer ou não nisso, mesmo porque não há como provar se a pessoa nasce ou não com vocação – ou com talento. O que importa é que ela queira fazer alguma coisa. Afinal, há pessoas que aparentemente – pelo que outras dizem delas – têm grande vocação e talento mas nunca desenvolveram nada de interessante. Portanto, para mim o importante é que a pessoa queira fazer e trabalhe para fazer. E o mais importante é como comportar-se para fazer, que, me disse um amigo, é a definição de arte em sânscrito. A palavra poesia, do grego, poíesis, significa “ação de fazer algo”. Acho interessante pensar em “como comportar-se para produzir poesia” – quer dizer, como comportar-se para que o resultado dessa ação, desse comportamento, seja poesia –, já que arte e poesia são palavras muito próximas quanto ao seu sentido. Para mim, um trabalho só é arte se nele houver poesia.
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EM SEU TRABALHO, QUAL O PERCENTUAL DE: A) INSPIRAÇÃO; B) TRANSPIRAÇÃO; C) INTUIÇÃO; D) CONSCIÊNCIA?
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Não creio que os artistas fiquem medindo isso enquanto trabalham. Existe aquela frase que diz “dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração”, que é verdadeira até certo ponto. Mas, às vezes, um trabalho é feito de forma muito natural, e, nesse caso, você não sente os “noventa por cento de transpiração”. Por outro lado, acho que nenhum trabalho de arte deve ser feito com esforço. Se há esforço não há naturalidade, e a naturalidade é, a meu ver, essencial na arte. E não apenas na arte, é claro.
Quanto à intuição, é quase sempre utilizada – senão sempre –, mas acho difícil estabelecer uma porcentagem para isso. Na verdade, não acho importante pensar em uma “porcentagem de intuição”. Se eu dissesse, por exemplo, “trinta por cento de intuição”, o que isso mudaria? E o que, na verdade, significaria?
Em relação à “consciência”, há dois aspectos que devem ser considerados. O primeiro deles está ligado à consciência de forma geral, que envolve técnica, questões formais etc., e nisto está envolvida também uma consciência do mundo, da existência, das questões filosóficas, da história da arte e tudo mais. Neste caso acho que a consciência deve ser total, ou seja, a mais ampla possível. O outro aspecto se liga à consciência do fazer em si, do momento do fazer. Em relação a isto Duchamp diz, em uma entrevista: “O artista não sabe o que faz. Não compreende nada do que faz. Se você aceita justamente esta forma de renúncia a compreender o que você faz, você irá muito mais profundamente naquilo que fará”. Concordo com ele. Algumas pessoas interpretam essa frase de Duchamp como “alienação”, mas ela não significa alienação de forma alguma. Significa que o artista deve enfrentar o desconhecido. Considero essencial que o artista se mova no desconhecido, enfrente o desconhecido, se quiser fazer alguma coisa nova e interessante.
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PARA VOCÊ, FAZER UMA OBRA ABSTRATA OU UMA FIGURATIVA RESPONDE À MESMA NECESSIDADE?
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Não. Responde a necessidades diferentes porque a figuração e a abstração são de naturezas diferentes, ou seja, cada uma delas tem o seu próprio caráter formal. No entanto, diz-se que toda obra figurativa é, essencialmente, abstrata, e isso é, de certa maneira, verdade. Estou me referindo às questões de estrutura, composição, equilíbrio, ritmo, harmonia, movimento, gesto e cor, que, em sentido geral, são as mais importantes, por exemplo, em uma pintura – por mais que mudem ao longo do tempo. Todo pintor deve estar atento a essas questões, que são exatamente as mesmas na figuração e na abstração, embora possam ser desenvolvidas de forma diferente em cada uma dessas modalidades. Na figuração há as questões pertinentes à própria elaboração daquilo que se chama figura, envolvendo nisso todos os seus aspectos e detalhes. O próprio tratamento das matérias é, obrigatoriamente, diferente. E na abstração há que haver um procedimento na feitura do trabalho que produza força suficiente para que aquilo seja uma obra. Na minha pintura, no entanto, me propus trabalhar como em um grande muro branco. Um espaço plano, aberto, e, por assim dizer, múltiplo, ou receptivo. Então, nesse espaço faço uma figura, mas também faço uma mancha – que seria abstrata, ou seja, que não é feita em função da construção de algo figurativo –, ou faço linhas que não representam nada – e que, portanto, têm, também, um caráter abstrato –, escrevo, pinto ou colo signos, símbolos, objetos etc. – claro que sempre considerando as questões plásticas e buscando uma coerência, uma unidade.
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ENTRE AS VÁRIAS TÉCNICAS QUE VOCÊ USA, ALGUMA LHE DÁ MAIS PRAZER? E/OU MAIS TRABALHO?
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Todas me dão muito prazer, nenhuma delas me dá mais prazer do que outra. Mas o prazer é diferente. O que um pintor sente ao trabalhar com aquarela é bem diferente daquilo que sente ao trabalhar com óleo, por causa da própria natureza de cada uma dessas técnicas. Fazer uma aguada, ou uma aquarela, dá um prazer diferente daquele que se sente ao se fazer uma linha ou um desenho a lápis. É claro que o óleo pode ser considerado com razão a técnica mais complexa e também a mais rica da pintura, porque envolve várias questões, como a da secagem lenta, etc., e porque apresenta as possibilidades mais amplas. Mas isto não quer dizer que pintar a óleo dê mais – ou menos – prazer do que pintar com aquarela.
Quanto a dar trabalho, a meu ver em arte nada dá trabalho, embora arte seja, de modo geral, um constante e intenso trabalho. Quer dizer, embora o artista trabalhe com toda intensidade para realizar uma obra, ele não faz ao trabalhar aquilo que se chama “esforço”, nem deve fazer. As coisas devem vir, chegar naturalmente, e não ser procuradas, forçadas a aparecer. Foi por isto que Picasso disse “Eu não procuro, eu acho”. Não consigo imaginar Jan Vermeer se esforçando e suando frio para pintar um quadro.
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É MAIS DIFÍCIL COMEÇAR OU PARAR — CONSIDERAR TERMINADA — UMA OBRA?
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Isto depende muito do estado de espírito em que se encontra o artista ao trabalhar. Quando há naturalidade e amor, nada é difícil. Assim, eu diria que começar e parar têm o mesmo grau de dificuldade. O problema aparece quando o artista, por falta de naturalidade, se vê obrigado a pensar, a escolher, a decidir – o que é sempre forçado. Qualquer decisão, qualquer escolha é forçada. Quando a pessoa tem que decidir é porque não há naturalidade. E, sem naturalidade, como é que ela poderá saber quando parar? Com naturalidade pode até prescindir do saber, porque então a questão passa por outro caminho, outra via, mais direta do que o intelecto. Portanto, para mim o mais importante é chegar a esse estado de espírito, um certo estado amoroso, talvez de inspiração, ou de liberdade. É claro que isto não significa que a pessoa só vá trabalhar quando se sinta inspirada, nem que a coisa aconteça de maneira mágica. Não. Ao lado do prazer, da satisfação, há uma luta, um sofrimento, um suor. Giacometti, quando pintava, deixava isto bem claro. No entanto, quando penso em Vermeer as coisas se modificam. É claro que há muita poesia no trabalho de Giacometti, que é muito bom. Mas há tanta poesia e tanta naturalidade no trabalho de Vermeer que a gente não sente ali nenhum esforço. Vermeer é realmente um artista maravilhoso. Neste sentido admiro muito, também, Camille Corot, Giorgio Morandi e Joseph Cornell, que são artistas maravilhosos e cujas obras são pura poesia.
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NASCIDO, CRIADO E ATUANTE EM MINAS, VOCÊ ENXERGA AO SEU REDOR UMA ARTE MINEIRA? EXISTE MINEIRIDADE?
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Não acho que exista uma arte mineira, uma arte paulista, uma arte carioca. Existe arte, isto é tudo. Mas há, sim, arte regionalista. Vejo, às vezes, críticos de arte elogiarem certos artistas porque, como dizem, “eles fazem trabalhos bem mineiros”, e, quando vou ver, o que esses críticos chamam de “bem mineiro” é, na verdade, aquilo que eu chamaria de "bem regionalista". Por exemplo, na exposição Les Magiciens de la Terre, realizada em Paris no final da década de 80, salvo em raros casos os curadores só aceitaram, de países que não fossem europeus, arte regionalista ou arte ingênua, naïve. Por quê? Porque para eles o que interessava era entretenimento, “novidade”. Eles queriam ver “aquilo que é diferente do que nós fazemos”, como se apenas eles pudessem fazer “arte erudita”. É ridículo. E o mundo da arte, o chamado artworld, está cada vez mais assim. A Bienal de Veneza de 2003, por exemplo, foi temática. Dá para se pensar em algo que castre mais o artista do que uma bienal temática? E quem são os que escolheram os dois temas da Bienal de Veneza de 2003? Qual é a autoridade – no sentido real deste termo – que têm essas pessoas para decidir qual deve ser o tema da Bienal de Veneza? E quem é que tem autoridade para decidir que a Bienal de Veneza de 2003 deve ser temática? Portanto, veja a que ponto as coisas chegaram... E não duvido nada de que, nas exposições que estão em curso este ano na França, durante o chamado “Ano do Brasil na França”, se exponha apenas arte regional, ou arte regionalista, ou arte naïve, porque, para quem enfileira e iguala as coisas dessa forma, na superfície, tudo é entretenimento. Me refiro a quem, em geral, tem decidido essas questões e a quem tem feito curadorias de bienais etc. Essas pessoas pensam igualmente em “culinária, esportes e artes” – não conseguem passar disso. Quanto ao termo “mineiridade”, considero-o simplesmente ridículo. Não gosto da palavra, por mais que ela queira expressar coisas sublimes. Na minha geração ninguém gosta dessa palavra, porque ela nos parece acadêmica, no sentido de retrógrada. Ao ouvir a palavra mineiridade a minha geração imagina logo um intelectual bem convencional e já bem idoso, daqueles que usam bengala e terno vincado, e que talvez façam o seu discurso em decassílabos, pronunciando-a com a voz trêmula de orgulho, o mesmo orgulho que os faz usar luto na vida. É triste. Nada disso nos interessa.
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VOCÊ SE SENTE, DE ALGUMA FORMA, MEIO OUTSIDER? REMAR CONTRA A MARÉ É UM PROBLEMA OU UMA SOLUÇÃO?
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Prefiro ser um outsider, ou ter a sorte de um pária, a ser um artista assimilado. Portanto, remar contra a maré não é um problema nem uma solução, é uma realidade que se impõe a partir de uma necessidade. Para dar um exemplo que a meu ver esclarece bem esta questão, vou falar novamente de Duchamp, um artista que admiro de maneira especial e que foi muito independente. Em uma entrevista de 1961, ao falar sobre seus ready-mades, ele disse: “Eu não escolheria um ready-made hoje. Isto não me interessaria, porque considero ter feito o suficiente para a minha satisfação. E não quero fazê-lo com a idéia de um público que se deleitaria”. Qual é a graça que pode haver em se fazer um trabalho sabendo-se de antemão que será admirado por um público que se ajoelhará como quem se ajoelha diante de um altar? Há um texto de Fernando Pessoa de que gosto muito e que trata muito bem de questões como reconhecimento, fama etc. Nele, Fernando Pessoa diz: “É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade”.
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VOCÊ SE GRILARÁ SE ALGUÉM DISSER QUE UM LADO SEU “DESCENDE” DE CY TWOMBLY? O QUE SÃO INFLUÊNCIAS, E QUAL O SEU LIMITE?
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Não, se disser no sentido de que fui influenciado por Cy Twombly, embora eu considere o termo descender, neste caso, um tanto malicioso... Twombly é um grande artista, que admiro muito. E não vejo nenhum problema em receber influências. Pelo contrário, acho natural e saudável. Não creio que haja artistas que não recebam influências. E acho que Cy Twombly também não se grilaria se dissessem que um lado dele “descende” de – ou foi influenciado por – Gorky ou Fautrier. Mas a palavra “influência” nem sempre é a correta ou a mais adequada. No meu caso com o Twombly, por exemplo, há um fato curioso: em 1981 comecei a desenvolver aquilo que, depois, chamei de Anotações Caligráficas, uma vertente do meu trabalho que trata questões de caligrafia, de escrita, de construção espacial, de deslocamento de estruturas, de gesto e também, por assim dizer, de abstração. Ao mesmo tempo eu trabalhava com a figura, mas não no mesmo espaço, não no mesmo papel ou na mesma tela – digo isto para esclarecer que nunca parei de trabalhar com a figuração, embora nessa época eu estivesse trabalhando muito com as Anotações Caligráficas. Terminei o curso de graduação na Escola de Belas Artes da UFMG no final de 1981. No início de 1982 me mudei para Paris e continuei desenvolvendo aquele trabalho de cunho abstrato, que era feito a grafite e óleo sobre tela ou sobre papel. Em outubro visitei a FIAC (Feira Internacional de Arte Contemporânea), no Petit Palais, e foi quando vi, pela primeira vez, um trabalho do Twombly, uma pintura de 1962 — Sem Título, que mede 80 x 100 cm e tem a palavra “Diana” escrita a grafite na tela, à direita. Fiquei extasiado. Pensei: Puxa, esse cara está fazendo um trabalho tão parecido com o meu! E por projeção, imaginei que se tratava de um jovem parisiense recém formado na Escola de Belas Artes. Olhei a pintura durante muito tempo. Não havia ninguém no momento que pudesse me informar sobre o autor. Mais tarde retornei ao estande e perguntei quem era e quanto custava o trabalho. “É Cy Twombly e custa 38 mil dólares”. Fiquei atônito. Com esse preço, é claro que não poderia ser um iniciante. No outro dia fui à biblioteca do Beaubourg e encontrei um exemplar do catálogo da exposição retrospectiva dele no Whitney Museum de Nova Iorque, com um texto maravilhoso escrito por Roland Barthes, intitulado "A Sabedoria da Arte". Só então fiquei sabendo da existência do Twombly. Gostei muito dos trabalhos, mas ao mesmo tempo me senti bloqueado. Pensei: Ele já fez o que estou fazendo. Que pena. Fiquei por dois anos sem trabalhar naquela direção. Só depois me libertei e continuei naturalmente. Não estou dizendo isto para justificar nada nem para me defender de nada. Estou simplesmente dizendo a verdade. Depois de algum tempo, me permiti receber influência do Twombly – o que, como disse, considero natural. Esses trabalhos influenciados chamei de Cartas a TW. “TW” é uma abreviatura criada por Roland Barthes. Depois me concentrei no sentido de unir as Anotações Caligráficas ao trabalho figurativo, e nisso entrou também uma outra vertente que desenvolvi, que chamo de fase marrom. Além de questões de linguagem como a distorção da figura e a escrita e os signos unidos à imagem, essa fase trata certas questões técnicas como o grafite trabalhado juntamente com a tinta a óleo, a pintura raspada com pano, aguadas, matérias, grafismos, etc. E tudo isso desembocou no meu trabalho atual, no qual, como comentei, considero a superfície do suporte como um grande muro branco ou vazio, um espaço de anotações – e daí o título geral –, em que posso fazer uma figura e também trabalhar com linhas, manchas, signos, anotações escritas, palavras soltas ou individuais, números e tudo mais, e onde posso deixar as coisas “inacabadas” e sem a necessidade de um “fundo complementar”, já que nesse trabalho o meu objetivo, em relação à questão da estrutura formal, é harmonizar plano e espaço. Quanto à outra pergunta, para mim influência é uma espécie de ação que se projeta a partir do reconhecimento de que, em algo que descobrimos, ou que passamos a conhecer, há alguma coisa que nos pertence naturalmente, que é também nossa, mas que estava latente. Então nos deixamos impressionar, e aquilo passa a fazer parte do nosso comportamento, ou é aplicado ao nosso trabalho – quer dizer, torna-se patente. Então, influência é essa impressão causada pela identificação de algo similar àquilo que trazemos internamente. Quanto ao seu limite, bem, o importante é que a influência seja bem digerida, ou transmutada. Acho indesejável a influência quando significa uma ação exercida sobre as disposições psíquicas, no sentido da modificação da vontade própria. Acho indesejável que uma pessoa deixe de ser ela mesma para ou por receber uma influência. Para mim é essencial que a pessoa seja ela mesma, porque só assim ela vai poder se realizar.
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O QUE É MAIS DIFÍCIL: VIVER OU CRIAR?
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Acho que as duas coisas têm o mesmo grau de dificuldade. É preciso viver para criar e é preciso criar para viver. Para mim, viver não significa repetir o círculo vicioso existencial – aquele que faz as pessoas nunca se livrarem das suas inseguranças, dos seus medos, das suas aflições, em suma, dos seus conflitos. Viver é rejeitar tudo isso, tudo que signifique repetição, tradição e condicionamento, e fazer aquilo que diga respeito a você, que seja puramente você. A partir de uma antiga canção portuguesa, ou de um lema de navegadores portugueses – não me lembro bem –, que diz “Navegar é preciso, viver não é preciso...” Fernando Pessoa escreveu “Viver não é necessário, o que é necessário é criar”. Gosto da frase. Mas ninguém cria se não tiver uma vida intensa, verdadeira, se sua existência não for vívida, se não tiver amor nem aventura. É claro que, em outro sentido, pode-se dizer que criar é mais difícil do que viver, porque muita gente vive e pouca gente cria. Mas será que muita gente vive realmente? Mesmo alguns artistas que crêem estar sendo contemporâneos ou de vanguarda não estão fazendo mais do que repetir. Isso é perigoso. A mente é capaz de inventar até sentimentos e estados de espírito que, no entanto, se a pessoa observar bem, verá que não são verdadeiros, não são autênticos. Há quem por conveniência “se apaixone”, por exemplo. As condições são adequadas para aquela pessoa, então ela inventa o resto: inventa que ama, inventa que quer e tudo mais.
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EM QUE O MOMENTO DA CRIAÇÃO SE DISTINGUE DOS OUTROS, NA VIDA?
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Prefiro dizer “o momento do fazer” – não gosto muito da palavra criação. Ele se distingue dos outros momentos principalmente pelo grau de atenção que exige. Devemos estar absolutamente atentos quando trabalhamos. Na verdade deveríamos manter esse nível de atenção o tempo todo na vida, e então seríamos felizes. Mas não é fácil. Por quê? Por causa daquilo a que me referi na resposta anterior: a mente – que envolve o ego. Essa é a questão. Para fazer algo, o artista deve se separar da mente. Deve dissolver o ego – o que significa dissolver os condicionamentos. Deve saber discernir o que é ele mesmo – sua alma – e o que é a mente. Deve parar de pensar, parar de ser dominado pela mente com todas as suas armadilhas. Quando o pensamento não está interferindo, há meditação e há verdadeira percepção, ou seja, há percepção direta. E então, através da observação atenta, ele pode chegar àquele estado de espírito que na alquimia se chama Mercúrio e que é a coisa mais maravilhosa que existe.
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UM ARTISTA CONTEMPORÂNEO PODE ESTAR DE BEM COM O MUNDO? ISSO SE REFLETE NO TRABALHO?
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Não apenas pode como, a meu ver, deve estar de bem com o mundo. E antes de tudo deve estar de bem consigo mesmo, ou então não poderá estar de bem com o mundo. Mesmo para questionar ou negar, o artista deve estar de bem consigo mesmo. Da mesma forma que não creio em arte “alegre” – que na verdade seria entretenimento –, não creio em arte “triste”, ou mórbida. Estou falando da forma, não do “tema”. Há quem diga que fazer arte não depende de estado de espírito. Imagine, então, que alguém te diga que seu filho foi atropelado, e que está no hospital em estado grave. Agora, antes de ir vê-lo, antes de saber como ele realmente está, antes de dar a ele qualquer assistência, sente-se ao cavalete, no seu ateliê, e pinte um belo quadro. Você conseguiria? Seria possível, numa situação como essa, alguém sentir vontade de fazer qualquer trabalho de arte? Evidentemente o estado de espírito em que se encontra uma pessoa se reflete naquilo que ela faz. No caso da arte, não apenas o estado de espírito do momento, mas tudo que a pessoa é se reflete em seu trabalho. Antoni Tàpies disse: “A obra é a pessoa”. Concordo com ele. E, se não fosse assim, para mim arte não teria sentido.
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VOCÊ VÊ COM OTIMISMO O FUTURO DA ARTE?
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Sim. E acho que a arte, enquanto manifestação, nunca vai deixar de existir. Mas no sentido social da questão, não penso muito no futuro da arte. Penso no presente, onde já há problemas suficientes. Por exemplo, para mim a independência do artista é muito importante. Mas em geral, o que se vê? Pessoas apegadas às coisas – apegadas ao sucesso, ao dinheiro, à fama, à carreira. E isso tolhe a independência delas, a sua liberdade. Para manter o seu status, uma pessoa assim tem que obedecer à própria fórmula que criou, quando não a fórmulas impostas. Ela se vê obrigada a repetir. E então está tudo acabado. Se a liberdade se foi está tudo acabado, não sobra nada. Outra coisa: às vezes a pessoa, principalmente quando é jovem, quer logo fazer sucesso, estar in; então se concentra, por exemplo, em fazer algo dentro daquilo que chama de “arte contemporânea”. As linguagens contemporâneas, para ela, devem ser instalação, novos meios, vídeo, performance, etc. Não podem ser pintura, desenho e escultura, porque isso é “antigo”. No entanto, o que ela está chamando de “arte contemporânea” não passa, em geral, de um novo academicismo. E ela não presta atenção em si mesma, não pensa se está bem, se está feliz ou não. Atropela a própria vida, a própria sensibilidade, em função do “novo”. Evidentemente não tenho nada contra os chamados novos meios de expressão. Mas por que a pintura e o desenho não podem entrar no círculo da chamada arte contemporânea? Acho importante a contemporaneidade, é claro. Mas o artista deve ser contemporâneo sem se preocupar com “ser contemporâneo”. Ele deve utilizar as linguagens com as quais se sente melhor, e não porque sejam “contemporâneas”. E ele pode, também, inventar novas linguagens – por que não? –, embora não seja nada fácil inventar novas linguagens como fizeram Picasso, Duchamp, Cornell, Twombly e outros. O que quero dizer com tudo isto é que, no fundo, o importante é que o artista esteja sendo autêntico, verdadeiro para consigo mesmo. O resto vem naturalmente.
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SER RECONHECIDO — FAZER SUCESSO — É IMPORTANTE?
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Desde que seja natural... O que é importante em arte? O importante é fazer, trabalhar, sentir o resultado do trabalho por si mesmo, não porque alguém disse “ficou bom” ou porque você fez sucesso de crítica, de público e/ou de mercado. O importante é que a coisa tenha um sentido para você. Imagine que você está sendo reconhecido no mundo inteiro como um grande artista e ganhou todo o dinheiro que queria. Ganhou os prêmios internacionais mais importantes, seus trabalhos estão nas melhores coleções particulares e nos melhores museus do mundo, você é admirado, etc. Mas e daí? O que você vai fazer a partir desse ponto? Vai ficar se vangloriando? Vai ficar se sentindo célebre à vontade? Vai ficar aproveitando a vida? E qual vai ser o resultado disso? Você vai se cansar, se entediar e se frustrar. Você tem quarenta e cinco anos de idade e tem que continuar vivendo. Então, o que sobrará para você? Você estará no seu ateliê trabalhando, como sempre fez. Estará vivendo a sua vida, como sempre fez. Você não vai se sentir melhor no seu ateliê por ser famoso ou reconhecido. Talvez se sinta até pior. Então, o melhor não é ser reconhecido. O melhor é você estar bem consigo mesmo, com o seu trabalho e com o universo – ou seja: o melhor é ser livre.
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COMO SER HUMANO E/OU ARTISTA: O QUE É QUE TE FAZ MAIS FALTA — BEM LÁ NO FUNDO DE SUA NOITE?
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Essa pergunta está buscando uma resposta óbvia, ou evidente. O que é mais importante para qualquer ser humano “bem lá no fundo de sua noite”? Um grande amor – é a resposta. E como artista o que te faz falta? Pessoalmente, eu diria que nada me faz falta. Tenho tido uma vida maravilhosa e tenho sido muito feliz. E, paralelamente, posso dizer que tenho tido sorte. Nunca abri uma concessão. Faço em arte precisa e exclusivamente o que quero fazer. De forma que me sinto muito bem. Mas, mudando um pouco de assunto, há uma coisa maravilhosa que pode acontecer bem lá no fundo da noite... Esta coisa é você acordar enquanto continua dormindo e perceber a realidade paralela, o que aponta para a possibilidade de desenvolvimento de uma visão na qual o que há por detrás da consciência e do pensamento pode se tornar tão claro e perceptível como as coisas exteriores o são para os olhos e para a mente ligada ao corpo.
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[1] Entrevista realizada em julho de 2005.
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