SOBRE O ARTISTA - continuação.

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Poucos artistas contemporâneos possuem um repertório intelectual tão vasto e complexo como Sérgio Nunes. Esse seu traço singular, aliado à particular sensibilidade e à técnica altamente refinada, produz uma obra de absoluta originalidade no cenário artístico nacional, originalidade que se expressa na sua atitude radicalmente ousada e transgressora, desafiando quaisquer tendências e modismos. Tal independência, que se apóia em um enorme poder criador, é a marca desse grande artista.
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Rodrigo Duarte
Filósofo, professor do Depto. de Filosofia da UFMG


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Sustentada pelo talento, silenciosa e de incomum qualidade, a obra de Sérgio Nunes rompe fronteiras, atingindo um raro patamar no universo da arte. Em sua pesquisa estética aliada à poética visual, Sérgio é um valor ímpar no circuito da arte contemporânea.
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Fabrício Fernandino - Belo Horizonte, outubro de 2001.
Escultor, professor de escultura na Escola de Belas Artes da UFMG, e Coordenador Geral dos Festivais de Inverno da UFMG.
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Campo Grande, 20.1.2002
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Caro amigo e artista múltiplo Sérgio Nunes
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Recebi o material de escultura,
pintura e até poesia que me
mandou. Quero agradecer. São
fases admiráveis de sua arte.
Muito obrigado pelo bom gosto
de tudo. Estou apreciando tudo
com vagar. E guardarei tudo
entre os presentes de emoção
que tenho ganho. Tenho muito
carinho por Minas e pelos
grandes artistas daí. Meu
afetuoso abraço
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Manoel de Barros
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(carta de Manoel de Barros a Sérgio Nunes)
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Um autor singular. Considerando a diversidade de técnicas utilizadas por Sérgio Nunes, pode-se dizer que seu trabalho revela mais o interesse pela construção de um dispositivo poético – que independe do fato dele tomar características abstratas ou figurativas – do que uma adesão “ideológica” a uma determinada tendência. “Tudo que em mim sente está pensando”, diz um verso de Fernando Pessoa que, guardadas as distâncias entre literatura e artes plásticas, se aplica como uma luva à obra de Sérgio Nunes. Seu emblema mais evidente é mesmo uma espécie de malícia técno-poética (uma erótica?) algo perversa, que, insidiosa, se infiltra no momento de observação da obra, afirmando sua adesão afetuosa ao campo onde se insere – o mundo das imagens – e, ao mesmo tempo, fugindo para um tempo sem tempo, onde sonha silêncios enigmáticos.
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Walter Sebastião
Jornalista e curador
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A VEZ E A VOZ DA VANGUARDA EM MOSTRA
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Márcio SAMPAIO
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Pastas dentifrícias de luar, cartas perdidas, envelopes antipostais, jornais e materiais reciclados, fósseis de uma arqueologia urbana contemporânea, humor e poesia, pintura, desenho, objeto, xerox, gesto, intuição, projeto, emoção e geometria formam o universo surpreendido por quatro artistas mineiros da geração de 70, que estão expondo a partir de hoje na Grande Galeria do Palácio das Artes.
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Uma exposição surpreendente pela riqueza de invenções, pelo inusitado de objetos e suportes, e que representa um dos momentos mais altos das artes plásticas em Minas. Marco Túlio Resende, Sérgio Nunes, Marcos Coelho Benjamim e Leandro Gontijo estão reunidos na exposição que será aberta hoje, às nove da noite, no Palácio das Artes; uma exposição diferente, de que qualquer pessoa poderá participar, pois uma das suas proposições é que as pessoas mandem notícias de sua terra, em forma de desenhos, gravuras, postais, cartas, recortes – material que, à medida que for chegando ao Palácio das Artes, irá integrando a mostra.
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O que primeiro define e liga entre si o trabalho dos artistas Marcos Coelho Benjamim, Sérgio Nunes, Marco Túlio Resende e Leandro Gontijo, embora a diversidade de suas criações, é o fato de que todos eles desenvolveram sua obra a partir do desenho e em contato com os veios criativos do chamado “desenho mineiro”. Todavia, a criação desses artistas não se faz, de maneira nenhuma, subsidiária a uma forma de expressão já definida e consagrada. Como se verá na exposição do Palácio das Artes, cada um dos artistas, ao compartilhar de um momento significativo da criação visual em Minas, oferece ponderável contribuição para manter a vitalidade da arte mineira, especialmente no momento em que a vanguarda tem pouca vez e menos voz.
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É certo, também, que, como artistas representativos da geração dos anos 70, eles projetam em suas obras as forças e peculiaridades definidoras da postura crítica e reflexiva que tão bem caracteriza a produção visual de Minas no contexto nacional.
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De qualquer forma, foi através do desenho que os quatro expositores partiram para a sua afirmação. E, também, a partir do desenho que fizeram suas primeiras experimentações de uma linguagem de vanguarda, desenvolvendo posteriormente outras linguagens e trabalhos com diferentes suportes, mantendo, entretanto, sua estreita ligação com o desenho.
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A surpreendente produção desses artistas reunida na exposição do Palácio das Artes forma um inesperado universo de produtos “marginais”, corrosivos, postos para desafiar o nosso pretenso equilíbrio.
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Não encontramos ali o formalismo estéril nem o árido exercício de técnicas tomadas como fim. Estas, se magnificamente dominadas, são para servir à expressão mais clara e contundente do mundo que cada artista vive, explora e quer nos revelar. Mais que o adestramento técnico, os artistas preocupam-se em comunicar o seu mundo cobrando imediata resposta do espectador. A resposta virá, possivelmente, como reação emocionada ao desafio dessas obras que carregam em seu bojo o questionamento de nossa postura passiva diante de um mundo em crise.
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DESARRUMANDO O COTIDIANO – O sentido mais profundo da criação desses artistas é que eles buscam suscitar inquietações que façam o homem capaz de reconquistar a sua sensibilidade, desvencilhando-se das teias de condicionamentos que a massificação coletiva impõe. Pois só a partir da consciência de que o mundo em que vivemos injeta continuamente poderosa carência de informações niveladoras, anestesiantes (mensagens deformadoras da sensibilidade), é que se poderá criar um aparelho de resistência capaz de recuperar para o homem deste fim-de-século a sua verdadeira identidade.
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Constatamos nesta exposição que os quatro expositores se inscrevem neste círculo, ainda restrito, de criadores que veiculam a invenção ao nível do que poderíamos chamar de “tática poética de combate”, cuja estratégia é aquela que Breton denominou de “desarrumação do cotidiano”. Esses artistas, com o seu amplo campo de invenção, desafiam o espectador a pensar a sua própria vida dentro da estrutura social. Desta forma, as imagens representadas em desenhos e pinturas, os objetos estranhos, reciclados ou reinventados com humor dramático e invenção poética, os conceitos sobre o fazer artístico e os sistemas da arte, as apropriações e transfigurações do real, atingem tal nível de instigamento da percepção e da análise, que haverão de suscitar reações vitalizadoras.
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O espectador, contatando-se com esse universo constelado de símbolos carregados de poderosa carga expressiva, será também induzido à releitura de seu próprio mundo, questionando-o.
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Porque as obras instaladas na galeria são, em última instância, instrumentos que levarão o espectador a se recolocar no mundo repensando as estruturas convencionais da sociedade anestesiada da qual participa.
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(Jornal ESTADO DE MINAS – quarta-feira, 17 de setembro de 1980 – página 5).
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Márcio Sampaio é artista plástico, crítico de arte e professor do Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais.
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Nota: o artista Leandro Gontijo desistiu de participar da exposição no último momento, quando este artigo já havia sido preparado, no jornal, para publicação.
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REFLEXÕES SOBRE A LINGUAGEM ARTÍSTICA
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Walter SEBASTIÃO
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Uma atitude: autores que já têm um percurso realizado, fazendo mostras com obras produzidas num largo período de tempo, visando recuperar uma visão mais ampla de seu trabalho, e mesmo fios que ligam as diferentes proposições. Mostrando a pertinência desta iniciativa, viu-se, este ano, a bela exposição de Paulo Henrique Amaral e, no momento, a exposição, com 117 trabalhos (1980-1995), de Sérgio Nunes. Em cena está um autor singular, cuja preocupação – hoje e ontem – sempre foi uma guerra no sentido de restituir, ao ato de produzir, imagens não só de expressividade mas de uma experiência de conhecimento.
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Metade das obras apresentadas foram realizadas entre 1980 e 1992; a segunda parte entre 1993 e 1995. “Não é uma retrospectiva, é um apanhado do trabalho”, vai logo avisando Sérgio Nunes, lembrando o grande número de obras inéditas e a organização por linguagem e não em ordem cronológica. São, segundo o autor, desenhos, anotações caligráficas, objetos, aquarelas e pinturas. Nesta última, a parte mais recente, está um pouco de todo o percurso, cuja mais recente formulação é “uma reflexão sobre a natureza da linguagem plástica e da realidade”.
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A pintura, para o artista, “não se limita à sensação, é reflexão, meditação” e até mesmo “ação direta, com capacidade de atingir o que se chamaria de plenitude”. Ele recusa a palavra iluminação para caracterizar esta experiência. Troca a palavra por “satori”, um termo do zen budismo que significa “sacudidela mental e da estrutura convencional”. A convicção neste princípio é motivo para críticas ao populismo estético: “Hoje, qualquer pessoa se vê no direito de dar palpites sobre o que a arte deve ser. Ninguém faz o mesmo com a Física”, afirma, relembrando um argumento de Marcel Duchamp, na sua opinião “o Leonardo da Vinci do século XX”.
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As afirmações servem para bombardear, também e respectivamente, as idéias de que arte significa prazer e a identificação com o gosto pessoal. Sérgio Nunes descarta as duas, reafirmando que “arte é sempre reflexão sobre temas específicos da arte” e “deslocamento de estruturas”. Relembra que, neste sentido, a obra de Marcel Duchamp é fundamental, já que mostra que “ arte e gosto são coisas inconciliáveis”. Os problemas relativos à incompreensão destes temas se devem, segundo o artista, à falta de preparo, de educação, de informação, tanto dos artistas quanto do público.
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Seguindo a linha mestra de seu raciocínio, Sérgio Nunes destaca sua admiração pelas obras artísticas realizadas na primeira metade do século XX, pela soma das “questões da poesia e do conhecimento”, colocadas de uma forma inigualável. Da produção contemporânea destaca Cy Twombly, por estar além da dicotomia abstração/figuração, pelas imagens de grande força que “puxam o observador para as questões da vida, da filosofia, da poesia, do tempo e da morte”. O desafio colocado para os artistas hoje: “Uma conjunção do tonal e do atonal, seja do jeito que for, mas com qualidade estética”.
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Algumas opiniões de Sérgio Nunes
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PINTURA – “A pintura é reflexão, uma forma de meditação. Reflexão nem sempre significa verbo, raciocínio. Existem formas de se atingir o que se chamaria de plenitude através de uma ação direta, que está além do pensamento. “Satori”, do Zen, do qual a palavra iluminação é má tradução, é uma espécie de sacudidela mental, de sacudidela na estrutura convencional. Imaginar é uma coisa de choque. Um quadro que não choque, no sentido mais sublime, não vale a pena.”
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ARTE – “A arte deveria retomar uma direção mais esotérica – o oculto, o escondido, o segredo, o que não pode ser dito com palavras. O exoterismo (conhecimento transmitido publicamente) da pintura do século XX é muito perigoso. Arte não tem nada a ver com gosto, não é uma coisa do prazer, é reflexão sempre. Isto não quer dizer que seja para uma casta, que seja uma torre de marfim, mas sim experiência de um conhecimento profundo, o mais intensamente poética, linguagem de precisão absoluta.”
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IMAGEM – “Observar profundamente como um artista constrói uma imagem é uma coisa que pode alterar a vida. Você vê algo único e totalmente original, fora do tempo e com um tempo próprio. Você percebe então a inteligência daquela obra. São coisas que falam profundamente a respeito da vida (...). Existe um pensamento na imagem, à medida em que tudo que é colocado ali é escolhido e a escolha significa reflexão.
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SÉCULO XX – “O século XX é forte pela unidade, no sentido de coesão crítica e histórica, mas perdeu muito pela futilidade. Gerou-se uma instituição chamada “mundo da arte” que é contra a arte. O artista, hoje, deve se proteger do “mundo da arte”. Senão, por mais que pense estar sendo original e contemporâneo, não está fazendo mais do que repetir coisas já feitas.”
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MARCEL DUCHAMP – “É o artista responsável por fazer a arte retomar a direção da qual nunca deveria ter se desviado: o esoterismo. Ele mostrou que arte e gosto são coisas inconciliáveis. Produziu a poesia do conhecimento, uma poesia que se desprende do conhecimento. É um Leonardo da Vinci do século XX.”
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(Jornal ESTADO DE MINAS – Segunda Seção – quinta-feira, 2 de novembro de 1995 – página 8).
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SOBRE SÉRGIO NUNES
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Mário Zavagli
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A produção artística mais significativa em Minas Gerais, e, mais especificamente, em Belo Horizonte, a partir dos anos finais da década de setenta, é de caráter reflexivo, intimista e marginal. Reflexão esta que evidencia o aspecto cíclico das manifestaçõe racionais/emotivas que acometem periodicamente a arte. O refletir contraposto ao fazer, este levado às últimas conseqüências após 1968, em clima exuberante de festa, onde a experimentação era a ordem do dia. Intimista porque se faz necessário, a partir das experiências anteriores, avaliar o saldo positivo. Os trabalhos passam a ser forjados em ateliers, longe do burburinho dos happenings, das performances, etc. E os melhores veículos nessa busca são, evidentemente, o desenho, a pintura, a gravura e objetos em pequenos formatos. Técnicas e suportes tradicionais, mas que emergem extremamente revitalizados por uma linguagem nova, contemporânea. E seus artistas, jovens em sua maioria, marginalizam-se do circuito comercial das galerias, num retraimento que evidencia uma cética – e correta – postura em relação a modismos passageiros. Busca-se a essência, o despojamento, onde o único malabarismo permitido é de caráter formal.
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Dentre esses artistas, venho acompanhando já há algum tempo, com especial interesse, o trabalho de Sérgio Nunes, figura proeminente e obrigatória em qualquer mostra significativa de Pintura ou Desenho que se faça hoje no país. Artista premiado em diversos salões de arte de diversos estados brasileiros, participou das mais importantes exposições realizadas em Belo Horizonte nos últimos anos.
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Dono de uma enorme capacidade de trabalho e de um virtuosismo técnico incomum (obtido à custa de tenaz exercício diário do Desenho e da Pintura), Sérgio Nunes é, porém, talvez o mais reflexivo artista de sua geração. Reflexão que questiona todos os conceitos contemporâneos de arte, especialmente os impostos a partir das duas últimas décadas, mas que ao mesmo tempo não se furta à análise profunda de outros momentos históricos, como por exemplo a arte holandesa do século XVII (Vermeer, Rembrandt, Franz Halz), ou ainda as manifestações múltiplas de renovação de linguagem das três décadas primeiras deste século (notadamente em Marcel Duchamp). Neste último artista, por sinal, Sérgio Nunes tem sua fonte maior de referências e mesmo sua maior admiração. Seu interesse pela obra de Duchamp levou-o, inclusive, a uma viagem aos Estados Unidos, em 1982, apenas para conhecer de perto – e com todos os sentidos – seus trabalhos mais significativos. Tamanho interesse e seriedade não encontra paralelos na arte mineira de agora.
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(Jornal ESTADO DE MINAS – quarta-feira, 23 de maio de 1984 – página 5).
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Nota: o texto, escrito em favor de Sérgio Nunes para o “Concurso Bolsa Ivan Serpa/1983”, continha ainda o seguinte parágrafo: “Por todas essas coisas, e por ter nesses anos aprendido tanto a respeitar os trabalhos de Sérgio Nunes, me sinto à vontade, e honrado, por indicá-lo à comissão que concederá a Bolsa Ivan Serpa. Acredito que, dificilmente em Minas Gerais tal Bolsa encontre melhor destino, melhores mãos, melhor fazer.” Mário Lúcio Zavagli – Artista Plástico, Professor de Desenho e Pintura e Chefe do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Belas-Artes da UFMG – Belo Horizonte, 12 de outubro de 1983.
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