S..O..B..R..E......O......A..R..T..I..S..T..A
.
SER LIVRE E INTEIRO
.
Olívio Tavares de Araújo
.
“A liberdade. Para que serve a liberdade, se não for para se comprometer?” Esta frase de Simone de Beauvoir, lida ou ouvida não sei quando, não sei onde, e por cuja correção literal não me responsabilizo, veio-me à cabeça diante de quinze anos da produção de Sérgio Nunes. Sua evidente liberdade é assegurada antes de mais nada por um domínio natural de técnicas e linguagens como poucos vi, até hoje. Marcello Grassmann, cuja obra parece igualmente provir de uma superdotação e crescer com fluência absoluta, insistiu sempre em me dizer: “Nunca tive facilidade para o desenho. Tive paixão, o que é muito diferente”. Pois bem. Sérgio Nunes pode-se gabar de ter as duas, e de as ter lastreado e enriquecido com um trabalho continuado e intenso, não só no nível artesanal como também no intelectual. De novo, poucas vezes vi num artista dessa geração a mesma cultura geral e específica, a mesma consciência das coisas e a mesma capacitação para circunscrever e perseguir seus objetivos.
.
Liberdade assegurada, ainda, pelo recurso simultâneo (e, nele, absolutamente natural e espontâneo) às duas vertentes da arte contemporânea que habitualmente se polarizam como opostos, o figurativismo e a abstração. A geração de Sérgio Nunes em Minas Gerais caracterizou-se por uma linguagem abstrata de caráter caligráfico equilibrada e elegante. Conseguia uma síntese entre a matriz sóbria do gesto de Amílcar de Castro – uma influência seminal, ao longo dos anos 1970 – e o abstracionismo mais expressionista e selvagem, de ascendência alemã, que vicejava internacionalmente na época (e floresceu plenamente, por exemplo, no Rio, na obra de um Jorginho Guinle). Na década de 1980, quando a conheci, a produção mais visível de Sérgio era prima da de Jimmy Leroy, por sua vez prima da de Giovanna Martins, por sua vez prima da de Isaura Pena, e assim por diante – todos mineiros, e todas, até requintadamente, abstratas informais.
.
A verdade, no entanto, é que a linguagem abstrata nunca esgotou as necessidades nem expressivas nem intelectuais de Sérgio Nunes. Junto com a parte da produção que mais aparecia, ele sempre realizou trabalhos figurativos, às vezes de um realismo esmerado. Com a comparação entre obras do final da década de 80 – de um lado, por exemplo, um pequeno e precioso grafite Sem Título, que mostra dois corpos nus de mulheres, uma com a cabeça, outra com os pés voltados para o espectador; ou ainda a poética e ligeiramente insólita aquarela Camélia; de outro lado, quase severos desenhos abstratos, como um Sem Título negro, e também objetos como Junk e Para Fulcanelli –, com tais comparações, dizia eu, temos uma noção clara da extrema latitude de seus interesses e horizontes.
.
Num artista com menos base teórica e menos prática, tudo isso poderia ser indecisão – ou, pior ainda, uma compreensão errada de seu próprio trabalho e do universo que se quer veicular através dele. No caso de Sérgio Nunes, é a exteriorização da liberdade que advém da competência. Sua indiscutível coerência fica por conta do mesmíssimo universo de índole lírica que está por trás de cada obra, sem exceção, independentemente da linguagem em que se manifeste. Não quero assustar ninguém nem sugerir comparações delirantes, mas é o que sempre fez também Picasso, que mudava de estilo a cada vez que mudava de mulher. Há artistas que, uma vez definido seu escopo – Mondrian, Joseph Albers, nosso Arcângelo Ianelli –, atêm-se a ele com disciplina, montando um projeto racional, e o desdobram dentro do possível. Há outros – como Jackson Pollock e nosso Iberê – que extravasam angústias a cada pincelada, sempre com a mesma linguagem atormentada. E há, enfim, os proteicos, como Picasso e Klee, que não se preocupam em se prender a coisa alguma. Vem a ser o caso de Sérgio Nunes, assim como, ainda no Brasil, o desse corajoso Siron Franco, que sempre se arrisca a cada obra, e ora acerta, ora erra, porque é gente e não a miniatura de um deus.
.
A necessidade de recorrer à figura confirma ainda, em Sérgio Nunes, um entendimento algo duchampiano (et pour cause, já que Marcel Duchamp é um de seus numes tutelares) da dicotomia figura versus abstração. Nesse entendimento, a pintura abstrata – neta do impressionismo – seria retiniana, sensorial, sensualista, e pouco apta a transmitir reflexão; esta caberia melhor na figuração. Discordando um pouco, creio que a evolução da abstração no século XX ampliou seus horizontes a ponto de torná-la também capaz de suscitar (e, portanto, de ter transmitido) reflexão; o exemplo de Pollock é enfático. Mas é verdade também que a abstração mineira da geração de Sérgio não era dessa estirpe – ao passo que ele, pelo contrário, é um artista que pensa e deseja fazer pensar com sua obra, sobre ela própria, seus suportes, faculdades e limites, sobre a linguagem e sobre o mundo como um todo.
.
Além disso, embora talvez ele mesmo não o tenha percebido, é certo que para um artista tão naturalmente dotado o restringir-se ao âmbito de uma abstração caligráfica poderia dar a sensação de auto-facilitação e redundância. A figura acaba, paradoxalmente, encerrando mais desafios (não estou falando só de técnica), e serve ao mesmo tempo como acicate e como âncora.
A síntese de Sérgio Nunes se definiu claramente na primeira metade dos anos 90. Figura e signo abstrato nunca funcionam como fundo um para o outro, e muito menos como um mero ornamento. São momentos distintos dos atos de perceber, sentir, pensar e fazer, registrados sucessivamente sobre a superfície do trabalho. Este conserva, durante a feitura, um caráter ontológico e estético de permanente work in progress, no qual camadas de vivência vão-se superpondo e aglutinando.
.
Assim, o preciso desenho de um rosto, por exemplo, pode ter a mesma função plástica e o mesmo significado de uma simples palavra não menos importante, rabiscada em um canto. Palavra e gesto adquirem múltiplas funções. Podem ser, como nos papiers collés dos cubistas, um elemento a mais construindo o espaço e a superfície, acentuando e evidenciando a autonomia do plano pictórico. Podem ter uma função simbólica ou de ignição poética: aqui, o termo vento, ali, tarde, acolá, os nomes de alguns meses do ano ou enigmáticas palavras em francês: Avoir, Blanc, Parole, Pomme, Versailles, Vauxcelles. Podem ser auto-instruções de trabalho como que acidentalmente perpetuadas (“fazer o braço com hachuras”), ou enfim intensificações do fato gráfico e, quem sabe, da memória do evento que o gerou. Num desenho de 1991/92, está anotado: “pontos de contato: queixo, pontas dos dedos, palma da mão”; trata-se seguramente do lembrete de alguma coisa. Torna-se claro, por outro lado (e como bom leitor de poesia Sérgio Nunes sabe disso), que há, sim, um discurso verbal paralelo, mas nem por isso menos plástico, menos legítimo ou menos integrado na pintura, a qual ele só enriquece.
.
E é hora de voltarmos a Simone de Beauvoir e sua frase. Por que me ocorreu, diante da liberdade do artista, exercida e exposta com um prazer tão visível para ele e para nós? Porque, não menos visível, parece-me que junto com a liberdade vem também, neste seu momento de vida (que coincide, no plano pessoal, com o começo da maturidade), uma tomada de posição. Um compromisso, portanto. Ele se libertou para se engajar. Não certamente um engajamento político, pelo menos no sentido em que essas palavras são habitualmente associadas. (Aliás, pouca ou nenhuma “arte política” se faz hoje no Brasil – onde os mais engajados são Iberê Camargo, Flávio-Shiró, Farnese de Andrade e Siron Franco, todos numa causa mais ampla, a da própria espécie humana). Seu claro compromisso é de outra e dupla natureza.
.
Primeiro, com uma arte que se inscreve na historicidade do século XX ao invés de renegá-la. Quando, por exemplo, me escreve numa carta que pretende fazer de seu trabalho “uma reflexão sobre a natureza da linguagem”, Sérgio Nunes não está, obviamente, duvidando da competência desta última. Age-se muito hoje em dia como se em arte só a dúvida sistemática fosse o caminho da verdade – mas há sempre outros, inclusive o da revelação, sem esquecer a intuição, o mais utilizado. Não é exato que só numa atitude negadora resida a contemporaneidade. Se de fato o momento histórico nos oferece mais dúvidas que certezas, é justamente para ajudar a circunscrevê-las e conjurá-las que a arte existe, não para se recolher diante delas num impasse suplementar. A arte de Sérgio Nunes é, assim, uma arte que se comprometeu com a própria arte. Propõe-se fazer algo permanente e convictamente inserido no percurso histórico. Citei, antes, o nome de Duchamp: poderia ter citado outros, de Cy Twombly (também, para ele, um nume tutelar) a Morandi. Como a desses mestres que tanto admira, sua postura como homem e artista é não renegar, não fugir, não se desviar, não esconder a cabeça na areia nem tampar o sol com a peneira.
.
O segundo compromisso é consigo mesmo. Reafirmam-se neste momento sua integridade, sua vontade de ser ele, de não querer parecer isso ou aquilo (nem “moderno”, a rigor), de só dever satisfações a sua pessoa. Amante, como eu, das sábias odes de Ricardo Reis – as quais de vez em quando trocamos numa carta –, vejo que ele andou ouvindo e seguindo esta recomendação do poeta:
.
“Para ser grande, sê inteiro: nada
.........Teu exagera ou exclui.
.Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
.........No mínimo que fazes.
.Assim em cada lago a lua toda
.........Brilha, porque alta vive”.
.
Nota: este texto teve como título original SÉRGIO NUNES, SUA ESPOSA E O SOL. Foi escrito em 1995 por Olívio Tavares de Araújo em conexão com a exposição individual SÉRGIO NUNES - PINTURAS, DESENHOS E OBJETOS - Fundação Clóvis Salgado/ Grande Galeria do Palácio das Artes / Belo Horizonte / Minas Gerais / Brasil, de 1º a 20 de novembro de 1995 - comemorando quinze anos de atividade do artista; cento e dezessete obras de Sérgio Nunes foram mostradas. O título do texto foi mudado para WORK IN PROGRESS por ocasião de sua publicação no SUPLEMENTO LITERÁRIO do Minas Gerais em fevereiro de 1996.
Posted by Picasa